Considerações oportunas (XXIV)

terça-feira, 31 de julho de 2012
Quem paga os salários destes esforçados trabalhadores?

Jornal O Estado de São Paulo online de 31 de julho de 2012
Depois da Câmara, Justiça barra divulgação nominal de salários do Senado
Sindicato conseguiu liminar para impedir revelação dos nomes e salários de cada um dos servidores na internet

Escreve La Bruyère:
"Há mesmo estúpidos, direi mesmo imbecis, que coseguem belos postos e que sabem morrer na opulência, sem que ninguém deva suspeitar de forma alguma que contribuíram para esta invejável situação com seu trabalho ou com o menor talento: alguém os conduziu à nascente do rio ou até mesmo somente o acaso os levou a encontrá-la. Alguém lhe disse: "Queres àgua? Bebe!" E eles beberam.
(Imagens: Georg Grosz)

Governo precisa gastar melhor os recursos

domingo, 29 de julho de 2012

"Diderot acreditava que a rotina no trabalho podia ser igual a qualquer forma de aprendizado por repetição, um professor necessário; (Adam) Smith, que a rotina embotava o espírito. Hoje a sociedade fica com Smith."  -  Richard Sennett  - A corrosão do caráter

A crise que afeta a economia mundial desde 2008 continua fazendo vítimas. Os Estados Unidos não conseguem diminuir sua taxa de desemprego e na Europa cada vez mais países entram em dificuldades financeiras, caso mais recente o da Itália. Do outro lado do mundo a China reduz seu ritmo de crescimento e diminui suas importações – o que significa que comprará menos produtos do Brasil. Por aqui a presidente Dilma ainda declarou em final de maio que o país está “300% preparado” para os efeitos da crise financeira e econômica internacional. Será? O crescimento da economia no primeiro semestre foi abaixo de 1% e previsões mais recentes estimam o aumento do PIB em apenas 2% acima de 2011 – mais um “pibinho”. A expansão da economia brasileira provavelmente será menor do que a americana, que já vem aos trancos e barrancos há anos.
Parte deste problema poderia ter sido evitada, segundo os especialistas, se o governo investisse mais em obras de infraestrutura, ajudando assim a impulsionar a economia. Para isto existe dinheiro, e muito. Segundo reportagem do jornal O Estado de São Paulo, “governo tem R$ 59 bilhões para investir, mas não consegue gastar”. O que ocorre é que o dinheiro é alocado para certos projetos, não é efetivamente gasto e acaba ficando acumulado no caixa do governo, sendo transferido de ano para ano.
Diversas são as causas desta sobra de dinheiro. Além da falta de eficiência da máquina administrativa do Estado, segundo analistas, também existem fatores como empecilhos legais, quando obras são questionadas na Justiça; problemas de licenciamento ambiental; e faltam autorizações de órgãos como Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Todos estes aspectos acabam dificultando e atrasando o início dos projetos. Segundo um estudo do Banco Mundial, o tempo gasto entre a decisão do governo de realizar uma grande obra e esta efetivamente ter início, é de três anos e dois meses em média. O que ocorre é que muito provavelmente a obra será inaugurada pelo sucessor daquele que deu início ao processo – seja prefeito, governador ou presidente. Mais um motivo para não se realizar certas obras.
Outro aspecto é que o Brasil não tem tradição de realizar grandes investimentos. Até o início dos anos 2000 o país vivia sendo obrigado a cortar investimentos previstos de infraestrutura, para atingir metas fiscais acordadas com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Será que com os países europeus, às voltas com estouros de caixa, o FMI também será tão rigoroso quanto o foi com os países latinoamericanos nas décadas de 1980 e 1990? Outro aspecto causador de grandes atrasos na execução dos projetos previstos são os constantes casos de corrupção, envolvendo ministros, assessores, fornecedores do governo e políticos em geral. Por longos meses, importantes obras permanecem paralisadas, porque verbas são congeladas e funcionários remanejados.
Sempre ao contrário do que diz o governo (lembram-se da “marolinha” de Lula?), esta crise também deverá afetar a economia brasileira. No entanto, será um desastre se, tendo dinheiro suficiente em caixa, o governo não for capaz de investir em projetos de infraestrutura – saneamento, transporte, saúde, moradias, entre outros –, necessários ao país e que poderiam ajudar a movimentar a economia.
(Imagens: fotografias de Émile Constant Puyo)

Pobreza e meio ambiente (II)

quinta-feira, 26 de julho de 2012

"Existe uma "cosmocracia" mundial que, sem decisão explícita, esvazia o político de sua substância e impõe "suas" vontades através da "ditadura dos mercados financeiros". Todos os governos são, queiram eles ou não, "funcionários" do capital."  -  Serge Latouche  -  Pequeno tratado do decrescimento sereno

Em artigo anterior abordei a relação entre a pobreza e a degradação ambiental. Argumentam alguns que as populações pobres provocam a destruição de ambientes naturais, por causa da ocupação irregular destas áreas. No entanto, esta invasão somente se dá devido à falta de outras opções de moradia para estas pessoas. A questão se resume então à pergunta: Se a pobreza produz degradação ambiental, quem gera a pobreza?
A mesma análise pode ser aplicada às relações entre as nações, principalmente ao comércio entre os países ricos e os países pobres. Tomemos como exemplo o comércio mundial das commodities, mercadorias produzidas em larga escala e cujos preços são negociados nas bolsas de mercadorias e definidos pelo mercado internacional. Existem commodities do tipo agrícola, como o trigo, a soja, o milho, o café, os óleos vegetais; e as commodities minerais, incluindo o petróleo, o ferro, o níquel, o alumínio, entre outros.
Ao longo da história foram os países pobres os fornecedores das commodities destinadas às nações ricas. Os países pouco desenvolvidos supriam as matérias primas – produtos agropecuários e minerais principalmente – a preços irrisórios e compravam bens industrializados a custos altos. Esses países destruíam seus recursos naturais para tentar manter sua balança comercial em equilíbrio, exportando produtos que atendiam à crescente demanda mundial por alimentos e produtos de consumo. Assim ocorre que os insumos da maior parte das cadeias de produção mundo afora têm sua origem em países pobres, mas dotados de grandes estoques de bens naturais – solos agricultáveis, florestas e minérios.
A partir dos anos 70 do século passado, assustadas pela degradação ambiental no mundo, diversas organizações governamentais, privadas e do terceiro setor, passaram a criticar os países pobres por estes destruírem seus recursos naturais, muitos de interesse estratégico para o mundo, como as grandes florestas e os sistemas fluviais. Elaboraram-se relatórios sobre o desmatamento da floresta amazônica e da Indonésia; fizeram-se estudos sobre a destruição das estepes na África e das reservas florestais da Índia. Condenavam-se os países pobres e em desenvolvimento, por estes não preservarem os imensos recursos naturais de que dispunham, colocando em risco a grande diversidade biológica.
Estes recursos naturais, no entanto, são gradativamente destruídos para o estabelecimento de pastagens, áreas de plantio, estradas, atividades de mineração e todo tipo de infraestrutura, produzindo produtos para a exportação. Acontece que estes bens têm remuneração baixa no mercado internacional, gerando poucas divisas, insuficientes para investimentos na recomposição dos ecossistemas destruídos pela atividade econômica. Em economia se diz que os custos das “externalidades” destas atividades econômicas – a degradação dos recursos naturais – não foram incorporados ao custo do bem extraído ou produzido.
Temos assim o quadro geral: os países ricos e suas instituições criticam os países pobres por não investirem o suficiente na preservação dos recursos naturais – alguns deles agora importantes para todo o planeta. No entanto, são estes mesmos países que exercem forte controle sobre os preços das commodities, produtos de grande impacto ambiental, e não querem pagar pelas “externalidades” ambientais.
(Imagens: fotografia de Mitch Dobrowner)

Pobreza e meio ambiente (I)

domingo, 22 de julho de 2012
"Diante da dúvida sobre sua existência ou não-existência, as causas são submetidas a uma cruel equipolência: há tantas razões plausíveis para declará-las reais, quanto para baní-las em direção ao não-existente. Portanto, face à dúvida deflagadora, a suspensão do juízo aparece como conduta mais adequada."  -  Renato Lessa  -  Veneno pirrônico - Ensaios sobre o ceticismo

Há, sem dúvida, uma estreita relação entre a pobreza e a degradação do meio ambiente. No entanto, existem diversas maneiras de analisar esta correspondência, dependendo dos interesses de quem faz o estudo. Uma idéia bastante aceita, por exemplo, é a de que populações pobres têm um impacto maior sobre o ambiente em que vivem, do que outros grupos de maior renda. De maneira superficial, este raciocínio parece correto, se pensarmos na ocupação irregular de áreas de proteção a mananciais, florestas urbanas e encostas de morro. Exemplos deste tipo de situação é a fixação de populações em áreas no entorno das represas de Guarapiranga e Billings, em São Paulo; o avanço das favelas cariocas sobre a floresta da Tijuca; e a ocupação de morros em cidades litorâneas do Sudeste do país.

No entanto, apresenta-se o fato sem analisar-lhe as causas. A população pobre simplesmente está lá, afetando o meio ambiente; desmatando, destruindo os recursos hídricos e provocando deslizamentos de terra. Poucas vezes se pergunta por que estas pessoas foram morar nestes lugares afastados, sem qualquer infraestrutura – água tratada, coleta de esgoto, escolas, postos médicos e transporte regular. Omite-se a informação – tão óbvia que por vezes passa despercebida – de que estas pessoas vivem nestes lugares exatamente porque são pobres, sem recursos.
O que aconteceu e ainda acontece em diversos países pobres e em desenvolvimento, com rápida expansão urbana – como a Indonésia, a Índia, Colômbia, Nigéria, Brasil, México – é que a parte mais pobre da população não tem renda suficiente para adquirir uma moradia em bairros dotados de razoáveis condições de infraestrutura. Para piorar esta situação, existe pouca ou nenhuma iniciativa pública de incentivo à construção de moradias para atender estes grupos sociais. Ao mesmo tempo, a gestão dos limitados recursos públicos funciona para atender interesses de grupos com maior poder econômico e político – tanto no governo municipal, mas principalmente no âmbito estadual federal. Todos estes fatores acabam fazendo com que a camada de menor ou nenhuma renda tenha que se estabelecer lá onde a terra custa pouco, ou é gratuita por ser pública, já que abrange áreas de floresta e proteção a mananciais.
Sem condições de oferecer outra opção de moradia a esta populações – por estar com seus recursos comprometidos em grande parte com projetos que atendem grupos de maior força econômica e política – o Estado passa à estratégia do “passar a mão na cabeça”. Oferece a esta população alijada para a periferia uma mínima infraestrutura nas áreas invadidas – para reduzir a pressão social acumulada – e aceita a degradação ambiental como fato consumado, sem recuperá-la.
Assim, por sua má gestão, o poder público (ou seja, aqueles que o conduzem) lesa a sociedade civil de várias maneiras. Não aloca os recursos gerados através de taxas e impostos de uma maneira equitativa, ao contrário. Trabalha para determinados grupos sociais, impossibilitando assim que parte dos cidadãos tenha acesso aos benefícios de uma sociedade moderna e democrática. Por outro lado, força esta mesma parte desfavorecida da população a se deslocar para áreas ainda em relativo equilíbrio ambiental, destruindo-as e prejudicando um patrimônio pertencente à sociedade da qual também fazem parte. Se a pobreza produz degradação ambiental, quem gera a pobreza?
(Imagens: fotografias de O. Winston Link)

da série "Assim se vive no Brasil"

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Simples e velha honestidade

José de Souza Martins
(publicado no caderno "Aliás" do jornal O Estado de São Paulo de 15/7/2012)

Alijados da sociedade, catadores que devolveram dinheiro achado retiveram como bem imaterial um antimoderno sentido da honra

Quando a honestidade surpreende e dela se desconfia é porque alguma coisa essencial está mudando na sociedade. É o que incita à compreensão sociológica dessa reação, suas ocultações e seus significados no recente caso da devolução, ao dono de um restaurante, dos R$ 20 mil que lhe foram roubados. O dinheiro fora achado por um casal de moradores de rua de São Paulo, o maranhense Rejaniel e a paranaense Sandra.
Já há um debate em relação ao suposto sentido do gesto dos dois moradores dos baixos de um viaduto do Tatuapé. Uns veem nele vontade de aparecer. Outros consideram trouxa o casal, pois "o achado não é roubado". Não poucos no gesto reconhecem a simples e velha honestidade, um valor de referência. Aliás, é por meio dela que a sociedade se reproduz e se preserva, regula e organiza a vida de todos, dos bem-intencionados e dos mal-intencionados, dos íntegros e também daqueles para os quais a honestidade já não é senão uma anomalia.
Vontade de aparecer é pouco provável, pois essa vontade é circunscrita a determinadas categorias sociais e depende de socialização específica. É própria da classe média, cuja cultura valoriza o parecer muito mais do que o propriamente ser. Quem procura parecer o que não é e mais do que é quase sempre se denuncia nos gestos impróprios e na inabilidade para manipular apropriadamente o código gestual que corresponde à aparência que pretende ostentar. Pessoas pobres sabem disso, mesmo quando imitam aquilo que não são. Os ricos também o sabem porque com facilidade identificam quem não pertence à categoria social dos que podem ostentar. As pessoas se traem nos desajustes da conduta.
Parecer traz identidade visual e o prestígio superficial da aparência, o que é característico da sociedade de consumo. Os dois moradores de rua, que são catadores de lixo reciclável, estão muito longe das fantasias consumistas da maioria e suas possibilidades de ostentação. São culturalmente incapazes de manipular os significados da aparência porque não têm como dela beneficiar-se.
Quanto a ser trouxas porque deixaram de apoderar-se do que não era seu, e do que claramente careciam, é algo improvável. Alguém que se apodere de uma quantia de dinheiro muito superior à sua capacidade de utilizá-la, mesmo dinheiro achado na rua ou no lixo, dificilmente poderá utilizar esse dinheiro na escala de suas carências acumuladas sem ser denunciado. A teia de regras e cautelas do mundo do consumo é vigilante e repressiva para que um pobre não se meta a ser o que não é. Não é improvável que o casal tenha levado isso em conta.
Mesmo que fosse a um restaurante para uma lauta refeição e matar a fome de uma vida, correria o risco de não ser servido e de despertar suspeitas. E, se pretensioso, mas prudente, pedisse uma garrafa de modesto vinho da terra, maior seria a suspeita. Pobre que é pobre toma água ou suco, dizem os vigilantes da conduta alheia. O que bem indica o que são as suspeitas que regulam as relações sociais. Todos somos devidamente observados todo o tempo por todos. O político que foi visto com amigos num restaurante com dois Romanée Conti, um vinho de US$ 6 mil a garrafa, já despertou suspeitas. Imagine-se o morador de rua servindo-se de modestíssimo vinho local. Para entrar no restaurante, teria antes que comprar os trajes apropriados à transitória escala de ascensão social que R$ 20 mil permitem. Em condições assim, dinheiro achado é inútil.
O gesto do casal repercutiu no Brasil e foi, no geral, bem-vindo como indício de que nem tudo está perdido, no mesmo momento em que na própria estrutura de poder a anomalia da corrupção compromete o sentido democrático da vida política. O gesto, aliás, não é novo nem raro. São frequentes casos semelhantes de dinheiro alheio achado e devolvido ao dono desconhecido de quem o acha, geralmente por meio da polícia.
O homem que achou o dinheiro declarou que gostaria que sua mãe o visse agora, pois ela se orgulharia dele. Eis a questão. Lançado para a margem da sociedade, reteve, como um bem pessoal e imaterial que é, o antimoderno sentido da honra. Por incrível que pareça, a maioria das pessoas é honrada e faz parte dessa imensa massa invisível dos não notados. Um trabalhador dedicado ao seu trabalho, ou um professor devotado ao ensino e à formação de seus alunos, terá pouquíssima chance de ser aplaudido, mesmo por quem de seu trabalho se beneficia. No entanto, eles têm o que lhes basta como nutrição moral: o sentido da honra e a honestidade. Já não se fala disso, mas os sociólogos sabem que uma das carências humanas destes tempos de liquefação dos valores é a da honradez e da honestidade, o alimento que sacia os que não foram vencidos, os que se mantiveram antiquadamente honestos.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A SOCIABILIDADE DO HOMEM SIMPLES (CONTEXTO)

Trabalho e produção

domingo, 15 de julho de 2012
"Em contraste com a ênfase existencial na angústia e na tomada de controle sobre nossas vidas, Hegel falou sobre "destino" e "fado" e mostrou a futilidade da tomada de decisão individual em face das forças assoberbantes do "Espírito do Tempo" (Zeitgeist)."  -  Robert C. Solomon  -  Espiritualidade para céticos

A vida do trabalhador mudou bastante nos últimos 150 anos. De duras jornadas de trabalho de 14 a 16 horas diárias, o tempo de trabalho foi reduzido até chegar às 40 horas semanais ou menos, dependendo do país. Em algumas nações da Europa, a jornada semanal de trabalho chega a ser de somente 35 horas. Supostamente, estes trabalhadores, altamente capacitados e utilizando-se do que existe de mais moderno em tecnologias de automação – robôs, computadores – tem uma produtividade muito maior do que seus colegas dos países em desenvolvimento e pobres, os quais ainda chegam a trabalhar 48 horas semanais ou mais.
No entanto, é fato que o sistema de produção capitalista ficou muito mais eficiente, se comparamos as atuais fábricas automatizadas com as aquelas ainda movidas a vapor, de meados do século XIX. Neste período, a vida dos trabalhadores fabris era muito ruim. O sociólogo Domenico De Masi escreve que um estudo realizado no início do século XIX por um cientista francês, dava conta que “naqueles tempos os escravos das Antilhas trabalhavam nove horas por dia, os condenados ao trabalho forçado nas instituições penais, dez, e os operários de algumas indústrias de manufatura trabalhavam dezesseis horas por dia”.  
Graças à organização dos trabalhadores em sindicatos e à ação de partidos políticos, ao longo do século XIX e XX, as condições de trabalho melhoraram e a carga horária foi diminuída. O processo avançou tanto que na década de 1960, em pleno crescimento do pós-guerra e antes das crises do petróleo e financeiras, se falava muito no tempo de lazer que sobraria ao trabalhador. O que este poderia fazer com o seu de folga, que seria cada vez maior com o aumento da produtividade? Não eram poucos os futurólogos que previam uma sociedade do lazer, na qual os homens trabalhariam pouco e dedicariam seu tempo ocioso a atividades intelectuais e artísticas. Em relação a isto escreveu o filósofo Bertrand Russel no início do século XX: “Num mundo em que ninguém tenha que trabalhar mais do que quatro horas diárias, todas as pessoas poderão saciar a curiosidade científica que carregam dentro de si e todo pintor poderá pintar seus quadros, sem passar por privações, independente da qualidade de sua arte.” Em outro trecho o pensador completa: “Acima de tudo haverá felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em frangalhos, fadiga e má digestão. O trabalho exigido será suficiente para tornar agradável o lazer, mas não levará ninguém à exaustão.”  
As previsões otimistas dos filósofos e futurólogos não se concretizaram. O que ocorreu nos últimos 40 anos pode ser resumido em alguns pontos: 1) Ocorreu um grande aumento da automatização da produção, do aumento de produtividade, mas milhões de trabalhadores foram colocados na rua; 2) Tanto a indústria quanto o comércio passaram a exigir profissionais cada vez mais preparados, sem, no entanto, aumentar comparativamente os salários, ao contrário; 3) O aumento do tempo de lazer foi uma falácia; quem está empregado trabalha cada vez mais e os desempregados passam seu tempo procurando emprego ou em trabalhos esporádicos.
Em um mundo que gera cada vez menos empregos e quando os gera são geralmente mais mal-pagos, quem consumirá o que o que se produz, já que como está estruturado o sistema só sobreviverá produzindo cada vez mais?
(Imagens: fotografias de Peter Keetman)

Consumo e a sensação do tempo

quinta-feira, 12 de julho de 2012
"O problema é que as propostas feitas pelas correntes dominantes da ecologia política européia são insuficientes ou levam a becos sem saída. A sua principal fraqueza é ignorar a conexão necessária entre o produtivismo e o capitalismo, o que leva à ilusão de "capitalismo limpo" ou de reformas capazes de lhe controlar os excessos (como, por exemplo, as eco-taxas)."  -  Ecologia e Socialismo  -  Michael Löwy

A aceleração contemporânea é, por isso mesmo, um resultado também da banalização da invenção, do perecimento prematuro dos engenhos e de sua sucessão alucinante. São, na verdade, acelerações superpostas, concomitantes, as que hoje assistimos. Daí a sensação de um presente que foge”. (Márcio Rodrigues Alves)
O sistema de produção capitalista atingiu uma nova fase de seu desenvolvimento a partir da década de 1950. Os Estados Unidos passam a ser a economia mais forte do planeta, impondo o sistema capitalista a todos os cantos do mundo, incorporando países fornecedores de matérias-primas e consumidores de produtos. Aos países europeus – tanto aliados quanto a Alemanha vencida – o governo americano reserva um lugar especial dentro da estrutura mundial do capitalismo, principalmente para fazer frente ao comunismo soviético e seus aliados da Europa oriental. A este sistema mundial de confronto de forças econômicas e bélicas foi dado o nome de Guerra Fria.
Sem entrar em detalhes, pode-se dizer que a Guerra Fria acabou com a queda do comunismo – a Queda do Muro de Berlim em 1989. Deixam de existir as economias socialistas e em todo o planeta, para o bem e para o mal, passa a vigorar o sistema de livre mercado. Abrem-se novos mercados consumidores e fornecedores (os países do leste europeu também se tornaram fornecedores de mão-de-obra especializada) e o capitalismo mundial entra em uma nova fase. A própria China, baluarte do socialismo de estado, decide promover mudanças em sua economia a partir da década de 1980 e acaba-se rendendo a um capitalismo sui generis.
Ao mesmo tempo em que o socialismo desaparecia como sistema econômico, o mundo capitalista realizava e já havia realizado uma série de avanços tecnológicos que impulsionaram o comércio mundial, mais ainda: disseminação da informática, expansão das telecomunicações e da rede mundial (internet). Associado a isso veio a abertura dos mercados, a queda das barreiras alfandegárias na maior parte dos países; fatos que facilitaram mais ainda a circulação de mercadorias e de capitais.
Estava assim pronto o ambiente para a mais recente fase de crescimento do capitalismo – antes que tivesse início a crise da economia americana em 2008, com suas consequências na Europa e demais países até o presente. Mas este é um assunto que não trataremos neste curto artigo; limitaremo-nos a descrever aspectos da última fase de desenvolvimento do capitalismo, que tenham relação com a afirmação do professor Márcio Rodrigues Alves, apresentada acima. 
Neste estágio o capitalismo tem algumas características específicas. Um dos aspectos principais é a produção em massa, gerando ganhos de escala. O lucro por unidade não é mais tão alto, devido à concorrência entre os fabricantes. Assim, ganha mercado quem – já que os preços são mais ou menos parecidos – investir em inovação, propaganda e distribuição. Um capitalismo movido pelo marketing. A inovação é resultado das demandas do mercado, daquilo que os consumidores querem comprar – ou são levados a querer comprar, no caso de produtos de massa. Assim, como diz o professor, ocorre a “banalização da invenção, do perecimento prematuro dos engenhos e de sua sucessão alucinante. Há uma sucessão constante de novos modelos de produtos, fazendo com que modelos se sucedam e rapidamente saiam de moda – caso dos computadores, celulares e automóveis e toda uma montanha de produtos de baixo custo e giro rápido. É a obsolescência programada.
O desejo dos consumidores, no entanto, não é autônomo ou espontâneo. Geralmente é produto de uma maciça campanha publicitária, constante, sempre a despertar novos desejos no consumidor. Em pouco espaço de tempo sucedem-se modelos, marcas e produtos, com uma aceleração cada vez maior do processo de criação, produção e consumo – processo que quanto mais acelerado mais acentua a acumulação capitalista.
Os consumidores são envolvidos neste vórtice de consumo pela propaganda e por todo um ambiente social que valida e reafirma este impulso de consumir em um ritmo crescente. Passam a associar a sensação de tempo decorrido com a freqüência do consumo: “A última vez que viajei estava com meu penúltimo modelo de celular...” ou “Quando casaram compraram o mais novo modelo de sedam...”, ou ainda “Quando começou a trabalhar aqui ainda utilizava um laptop de modelo antigo...”, e assim por diante...
Sob certo aspecto, mede-se o decorrer do tempo pelos objetos consumidos, demonstrando cada vez mais a freqüência do consumo. Este fenômeno nos dá a sensação de “acelerações superpostas, concomitantes, às que hoje assistimos. Daí a sensação de um presente que foge”.
(Imagens: fotografias de Alexander Grinberg)

O impacto imprevisível das mudanças climáticas

domingo, 8 de julho de 2012

"Fala-se, por exemplo, em aldeia global para fazer crer que a difusão instantânea de notícias realmente informa as pessoas. A partir desse mito e do encurtamento das distâncias - para aqueles que realmente podem viajar - também se difunde a noção de tempo e espaço contraídos."  -  Milton Santos  -  Por uma outra globalização 

Uma parte da luz do Sol fica retida na atmosfera da Terra na forma de calor, possibilitando uma temperatura média anual de 14,5º C em todo o globo. Se este calor escapasse totalmente para o espaço, a temperatura média da superfície terrestre seria muito mais baixa, o que teria dificultado o aparecimento da vida. Em toda a história da Terra a atmosfera sempre conteve gases e cinzas, resultado da atividade vulcânica, da evaporação da água, dos incêndios florestais e do apodrecimento da matéria orgânica. A existência dos gases de efeito estufa na atmosfera não é, portanto, uma novidade. Quando mais concentrados, a temperatura do planeta aumenta; quando em menor concentração a Terra esfria.
Ao longo de seus 4,5 bilhões de anos de existência o planeta passou por temporadas mais quentes e outras mais frias. Estas variações de temperatura, associadas a outros fatores como as mudanças climáticas e o vulcanismo, contribuíram para o surgimento e desaparecimento de seres vivos. A variação da temperatura média da Terra e sua conseqüência imediata, a mudança do clima, foram importantes fatores de destruição e criação de vida e paisagens.
A espécie humana surgiu há aproximadamente 150 mil anos e já atravessou vários períodos de mudança da temperatura da Terra. A última fase mais fria – a mais recente Era Glacial – terminou há 12 mil anos. A partir daí, em parte por influência do clima, a humanidade passou por um grande número de mudanças: criação da agricultura, da religião, do Estado, da escrita e tecnologia; do machado de pedra polida ao chip de computador foi um longo caminho para o homem, mas apenas um piscar de olhos na história da vida.
Hoje vivemos em uma sociedade tecnicamente sofisticada, segura e autosuficiente, aparentemente afastada da natureza e de suas intempéries. As necessidades humanas básicas de abrigo e alimentação – pelo menos nas sociedades mais justas – são atendidas por uma complexa estrutura econômica de produção e distribuição. Nossa civilização subsiste completamente alheia ao mundo natural; como se a atividade agropecuária e industrial, a mineração e a exploração dos recursos hídricos nada tivessem a ver com a natureza.
A grande descoberta da década de 1980 é que com nossas atividades econômicas estamos influindo no clima da Terra. A queima de combustíveis fósseis – na forma de petróleo, carvão mineral e gás natural – em processos industriais, geração de energia e para o transporte, vem gerando gases que estão se acumulando na atmosfera. Uma das conseqüências desta concentração de gases é que uma quantidade cada vez maior de calor da luz solar – os raios infravermelhos – está saturando a atmosfera, aumentando sua temperatura.
As conseqüências exatas de tal aumento da temperatura ainda não estão claras para a ciência. Em termos gerais, no entanto, já sabemos que a com a atmosfera mais quente aumenta a temperatura dos oceanos e cresce o aparecimento de furacões, tufões e todo tipo de tempestade. Pode mudar a direção normal dos ventos e, como conseqüência, a localização das nuvens. Com isso mudam os regimes de chuva, influindo na quantidade e tipos de colheitas, no nível dos reservatórios. As conseqüências para a agricultura, geração de energia, incidências de catástrofes climáticas, entre outros aspectos, são imensas e ainda imprevisíveis.   
(Imagens: fotografias de Yevgeny Khaldei)

O trânsito em São Paulo

quinta-feira, 5 de julho de 2012

"Elimina-se aqui a dicotomia entre ser e aparência, assim como entre ser e devir, porque o ser passa a se mostrar como mera construção ilusória da aparência e a sofrer como uma tal aparência a força avassaladora do devir"  -  Marco Antônio Casanova  -  Nada a caminho  -  Impessoalidade, niilismo e técnica na obra de Martin Heidegger



A situação do tráfego de veículos é cada vez mais grave em São Paulo. A extensão dos congestionamentos vem aumentando mês a mês e tem durado cada vez mais tempo durante o dia. O engarrafamento mais longo até o momento na história da cidade ocorreu em junho deste ano, quando havia 295 quilômetros de filas de carros – mais do que a metade da distância entre São Paulo e Rio de Janeiro. Para quem mora e circula pela cidade, já são comuns os congestionamentos aos sábados à noite e domingos à tarde. Durante a semana, o trânsito só começa a melhorar a partir das nove horas da noite. Ruas e avenidas que até há pouco tempo tinham um trânsito leve, por estarem fora dos grandes fluxos de deslocamento, estão sendo usadas como rotas de fuga dos congestionamentos, aumentando ainda mais o caos e a falta de alternativas de circulação. Em dias de chuva temos caos quase total (seria total se coincidisse com manifestações na avenida Paulista).
O grande problema da cidade, segundo os especialistas, é o crescente aumento do número de veículos em circulação. Na cidade com cerca de 16.000 quilômetros de ruas, são emplacados a cada dia cerca de 700 novos veículos, quantidade equivalente ao número diário de nascimentos. A frota de veículos na cidade quase ultrapassa os 7 milhões de unidades; formadas por  5,2 milhões de  carros; 892 mil motos, triciclos e quadriciclos; 718 mil micro-ônibus, caminhonetes e utilitários; 158 mil caminhões e 42,3 mil ônibus.
Grande parte do problema está no próprio desenvolvimento da cidade. De pacata metrópole, com uma modesta mas relativamente eficiente infra-estrutura de transportes até a década de 1950, São Paulo transformou-se em uma megalópole com rápida expansão territorial e populacional, devido à industrialização, urbanização e migração. Este crescimento, no entanto, não foi acompanhado pela expansão dos transportes públicos.
Nosso metrô, por exemplo, tem uma rede de apenas 74 quilômetros, ao passo que Paris tem 211, Nova York 370 e Londres tem 415 quilômetros de redes de metrô. Os cerca de 11 mil ônibus destinados ao transporte público que diariamente circulam em São Paulo, são insuficientes para atender a demanda, tanto em termos de quantidade quanto de qualidade.
Resta ao cidadão procurar suas próprias alternativas, apelando para o uso cada vez mais freqüente do automóvel, acessível a uma parcela crescente da população devido à facilidade de crédito. Aliás, não deveria ser novidade o aumento do uso do veículo próprio, já que desde a década de 1950 os governos só vêm priorizando o uso dos veículos automotores, em detrimento de outros meios de transporte menos impactantes para o ambiente urbano, como o bonde (quem se lembra dele?), o trem, o ônibus e o metrô.
Em todo o caso, está aí o problema e precisamos achar uma solução, pois além da perda de tempo, reduzindo a produtividade, o trânsito causa custos e poluição com a queima desnecessária de milhões de litros de combustível. A poluição, por sua vez, provoca mudanças no clima e na saúde dos habitantes da cidade. Aumentar a duração do rodízio, criar taxas para circular em certas zonas da cidade, instituir o compartilhamento de veículo alugado, aumentar os investimentos em transporte público, facilitar o uso de meios não-poluentes de transporte como a bicicleta, são algumas das propostas sugeridas.
O assunto é importante para o futuro da cidade. Precisamos nos lembrar disso por ocasião das próximas eleições municipais; cobrar uma posição dos candidatos também com relação ao transporte público. Não se trata de resolver os problemas, para isso uma só gestão é pouco tempo. Mas como administradores aparentemente capazes, têm obrigação de apresentar alternativas – e implantá-las caso eleito.  
(Imagens: fotografias de Alexey Titarenko)

O PAC e a infraestrutura

domingo, 1 de julho de 2012
"[...] o princípio do positivismo (lógico), chamado de princípio da economia do pensamento, nem sempre foi bem formulado e consiste exatamente nessa operação de redução, ou seja, na ideia de que todo conhecimento visa descrever o mundo dos fatos por intermédio de um mínimo de conceitos."  -  Mélika Ouelbani  -  O Círculo de Viena 

O PAC, o Plano de Aceleração do Crescimento, não está correspondendo às expectativas. Criado em 2007 durante o governo Lula, o plano pretendia melhorar a infraestrutura com investimentos nas áreas de energia, transporte, telecomunicações, saneamento, moradia, entre outros setores. Festejado como um dos grandes projetos do governo durante o período eleitoral, o PAC também agradou bastante às grandes empreiteiras e aos tradicionais fornecedores do governo.
Agora, porém, com o rigor dos números, os ânimos exaltados começam a se defrontar com a realidade dos fatos. Recentemente, o Tribunal de Contas da União (TCU) mostrou que somente uma em cada cinco obras iniciadas no âmbito do programa ainda no governo Lula, foram finalizadas. Ou seja, entre 2007 e 2010 foram iniciados 13.653 projetos, dos quais somente 2.947 foram concluídos, demandando R$ 192 bilhões – 13,73% do valor final do PAC 1.
Segundo o jornal “O Globo”, no início do mandato da presidente Dilma Rousseff o governo descumpriu a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) além de uma determinação do TCU, por não ter divulgado o balanço final do PAC 1. Já em 2011 o governo Dilma divulgou o primeiro balanço do PAC 2, incluído obras que ainda faziam parte do PAC 1. O governo, segundo os técnicos do TCU, descumpriu a determinação do tribunal que o obriga a apresentar informações sobre o andamento dos projetos a cada quatro meses.
Não é por outra razão que a maioria esmagadora dos cidadãos brasileiros – inclusive a imprensa – não sabe exatamente como e onde estão sendo investidos os recursos financeiros destinados ao PAC. Os constantes adiamentos das datas de conclusão dos projetos, devido ao atraso das obras, prejudicam um efetivo acompanhamento do plano. Caso mais recente é o do navio João Cândido, que foi lançado ao mar com 20 meses de atraso, em final de maio. A Transpetro, empresa do grupo Petrobrás, declarou que multou a empresa Estaleiro Atlântico Sul pelo atraso, em valor estranhamente não divulgado “por sigilo de cláusula contratual”.
Enquanto isso, a imprensa também publica dados do próprio governo relacionados com as obras para a Copa do Mundo de 2014. Dos projetos, 41% ainda nem tiveram início e apenas 5% estão concluídos. Mesmo assim o governo nega que esteja atrasado, afirmando que entregará 83% das obras até 2013 e o restante até junho de 2014. “Não concebo como atraso, mas como ganho porque quando se tem um bom projeto você vai ganhar na execução”, disse o ministro das Cidades, Aguinaldo Ribeiro, para justificar o estágio pouco avançado da maioria das obras previstas.
Apesar do ufanismo e da propaganda na mídia, a infraestrutura brasileira continua capenga. Na área do saneamento, por exemplo, 18,6 milhões de pessoas ainda vivem em áreas com esgoto a céu aberto e cerca de oito milhões convivem com lixo em suas próprias ruas – isto sem falar dos mais de 90 milhões de brasileiros cujos esgotos domésticos ainda não são tratados.
O mais admirável em tudo isso é que somos um dos países mais ricos do mundo; a sexta maior economia da Terra. Enquanto os governos federal, estadual e municipal choram a falta de recursos, pagamos 34% de todas as riquezas do país (PIB) em impostos. Por outro lado, continuamos com infraestrutura e serviços públicos de baixíssima qualidade; tão ruins que são até um desrespeito ao cidadão brasileiro.  
(Imagens: fotografias de Robert Doisneau)