da série "Assim se vive no Brasil"

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Melhor o quê?
(publicado no caderno Aliás do jornal O Estado de São Paulo de 7 de outubro de 2012)
Na língua portuguesa, a única expressão acima de 'terceira idade' no meu ódio é 'melhor idade', que, inclusive, embute um insulto
UGO GIORGETTI
Estatísticas são frequentemente um enigma. Quer dizer que seremos, em dez anos, 1 bilhão? Isto é, de velhos, categoria em que me enquadro muito a contragosto e premido pelos fatos. Então seremos não sei quantos no Japão, seremos outro número exorbitante na Indonésia e, finalmente, chegamos ao nosso querido Brasil, onde já somamos perigosos 23,5 milhões. A partir disso, só uma poderosa imaginação para prever o que virá.
Não é tanto a profusão dos números exatos das estatísticas o que me intriga, embora considere imprudente aceitarmos números definitivos num mundo que muda a cada segundo, mas o que significam esses números. Sim, estamos progredindo, nós os velhos, em direção a um fim menos pior, concordo. Mas de que velhos estamos falando?
Como todas as estáticas abrangentes, sobretudo aqui no Brasil, essa dos velhos suscita algumas perguntas que valem para muitas outras pesquisas. Quando se fala em velhice e seus progressos, imediatamente somos remetidos a imagens de velhos saltitando alegremente por calçadões à beira- mar, fazendo exercícios em verdes parques, passeando com seus cachorros, de bermuda e bonezinho. Serão esses os velhos brasileiros? Serão esses os velhos que estão atingindo no Brasil, de forma digna e vigorosa, os 70 anos? É apenas uma pergunta que faço a quem elabora as estatísticas.
Não acredito numa melhora de vida uniforme, pelo simples fato de que nada é uniforme, para não dizer minimamente igualitário, no Brasil. O que tem a ver os velhos furando filas em caixas de supermercados, felizes da vida, gozando de suas pequenas benesses, e a grande maioria de velhos que nem sequer consegue andar até o supermercado mais próximo? O que tem a ver os velhos que frequentam a Sala São Paulo com aqueles, a imensa maioria, que fica atirada numa poltrona o dia inteiro, à mercê de uma televisão que os desconecta ainda mais do pouco de realidade que lhes resta?
Do jeito que as coisas são, não seremos problema algum, pelo menos no Brasil. Aqui os velhos continuam morrendo cedo, se não de morte propriamente dita, pelo menos da morte do espírito, e não preciso de estatísticas para comprovar isso. Basta estar de olhos abertos. A saúde pública, por exemplo, continua indigna, e é uma das famosas "questões brasileiras" nunca resolvidas. Seremos, antes, uma desculpa para justificar déficits e buracos no orçamento da saúde dos quais sabemos muito bem as causas. Uma desculpa para continuarem supremamente incompetentes, injustos e de uma ineficácia escandalosa.
Então não melhoramos em nada no geral? Melhoramos, concordo que qualquer classe social se beneficiou, umas mais, outras bem menos, dos progressos principalmente em saúde pública e alimentação nas grandes cidades. Mas progredimos à brasileira, com as desigualdades brutais de costume que as estatísticas ocultam e também, digamos, por inércia do sistema. Seria verdadeiramente inconcebível que, ao atingir o patamar de "grande economia mundial", nossa esperança de vida se mantivesse nos 50 anos, como era não faz muito tempo.
Na minha opinião de leigo, apenas de observador atento do que acontece, somos, os velhos do Brasil, uma falsa ameaça. Quando as coisas apertarem haverá um político a pedir que se aumente a idade de aposentadoria, por exemplo. Haverá a costumeira, frágil, reação de velhos dos bairros nobres, um pouco de barulho, alguma polêmica nos jornais falados da TV, mas finalmente tudo vai se acertar. Da pior maneira, é claro.
Estou sendo muito pessimista? Talvez, mas nisso estou exercendo apenas uma prerrogativa dos velhos, não é mesmo? Por que eu seria diferente? Velhos tendem a achar que tudo está errado, em geral pior do que já foi. Pode ser que seja esse o caso. De qualquer maneira, de minha parte, nunca irei a bailes da terceira idade, vou me policiar para nunca furar uma fila dando cotoveladas, não visto bermuda na rua, não tenho cachorro e acho as perspectivas da velhice profundamente desagradáveis. Na língua portuguesa a única expressão que está acima de "terceira idade" no meu ódio é "melhor idade", que, inclusive, embute um insulto a quem tenha o cérebro com dimensão um pouco maior que a de um milho.
Mas não sou chato. Para minha velhice quero apenas seguir tendo um pouco de sorte. Sorte é a única coisa fundamental neste mundo para seguir vivendo, fazendo coisas sem pensar muito em velhice, etc. Principalmente no etc. E manter a elegância até quando der. Não a física, que é impossível, mas a mental. Neste momento me ocorre, não sei por quê, a figura do escritor argentino Adolfo Bioy Casares, que, metido sempre em impecáveis paletó e gravata, era um dos velhos mais elegantes, afáveis, inteligentes e irônicos que já vi. Talvez tenha pensado nele também por ter escrito um livro, cujo tema é a velhice, e que, graças a Deus, li quando jovem. Não é exatamente uma leitura agradável para velhos. Chama-se Diário da Guerra do Porco, e, suprema ironia, na época foi classificado como ficção científica.
UGO GIORGETTI - É CINEASTA E COLUNISTA DO JORNAL O ESTADO DE SÃO PAULO

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