Cerrado e agricultura

sábado, 26 de agosto de 2017
"A desculpa habitual dos que causam a desgraça dos outros é que querem o seu bem."   -   Vauvenargues   -   Reflexões e máximas

O Cerrado é, depois da floresta amazônica, o segundo maior bioma brasileiro com uma extensão original de cerca de 2 milhões de quilômetros quadrados. A área remanescente que permanece preservada, corresponde atualmente a cerca de 30% da área original. Sua vegetação é composta por diferentes tipos de formações; a floresta, a savana e os campos, dependendo da altitude do terrenos, do relevo e da pluviometria - que não é igual em toda a extensa área do bioma. A maior parte de seu domínio, no entanto, tem precipitações pluviométricas que favorecem a agricultura. O solo, por possuir baixa fertilidade e acidez alta, com elevado conteúdo de alumínio e pouca quantidade de nutrientes, requer correção e adubação adequada.

Em 1975 o governo federal instituiu um programa para acelerar o desenvolvimento dos estados de Minas Gerais, Goiás (que à época incluía o atual estado de Tocantins) e Mato Grosso (não existia o estado de Mato Grosso do Sul), através de diversos financiamentos, visando a construção de estradas, silos, armazéns e a pesquisa agropecuária. Na área da pesquisa, a principal missão da então recém criada Embrapa Cerrados era desenvolver tecnologia agrícola, de modo a viabilizar a agricultura extensiva no solo pouco fértil do Cerrado. Em pouco mais de uma década, desenvolveu-se na região uma vasta atividade agrícola, baseada principalmente na soja e no milho. Atualmente a região é responsável por cerca de 60% da produção de grãos do país. Segundo especialistas, a agricultura na área do bioma ainda tem bastante espaço para crescimento sem comprometer áreas ainda preservadas. Há 50 milhões de hectares de áreas de pasto pouco aproveitadas, que poderiam ser usadas para a produção agrícola.  
    
Se o solo do Cerrado originalmente não é propício para a agricultura extensiva, há outros fatores que ajudam a degradar a terra ainda mais. É o caso do uso excessivo de pesticidas (alguns dos quais proibidos em outros países) e a remoção da cobertura original e exposição do solo às intempéries, provocando erosão e assoreamento dos cursos d'água. São fatores que contribuem para deteriorar o meio ambiente, tornando a atividade agrícola mais custosa.

A convivência de áreas preservadas com a monocultura extensiva e a criação de gado em grandes extensões de terra, tem sido difícil durante toda a história da ocupação do Cerrado, nos últimos quarenta anos. O crescimento do desmatamento é um dos principais indicadores deste conflito. Em 2015 a taxa de desflorestamento do Cerrado foi 52% superior ao da Amazônia, tendo perdido 9.483 km², comparados aos 6.207 km² destruídos da floresta tropical.

As maiores perdas de vegetação original de Cerrado verificam-se na área de expansão da fronteira agrícola, conhecida como Matopiba, que abrange os estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Ocupando 73 milhões de hectares, a região é considerada a nova  fronteira agrícola brasileira e tornou-se grande produtora de grãos e fibras.
O controle aéreo do Cerrado, segundo o ministério do Meio Ambiente, será a partir de agora realizado anualmente, como acontece com a Amazônia. Ainda não existe uma série histórica de monitoramentos, mas tomando por base os últimos dados disponíveis de 2009 tudo indica que está havendo uma redução na taxa de desmatamento. Permanece porém o fato de que a legislação permite uma supressão de 80% da vegetação em áreas localizadas no Cerrado, enquanto que na Amazônia Legal esta é de apenas 20%, em zonas florestais. Em recente entrevista ao jornal o Estado de São Paulo, a ex-ministra do Meio Ambiente, Izabel Teixeira, comentou em relação a esta diferença estabelecida no Código Florestal que "é preciso avaliar com clareza a dinâmica do desmatamento e novas medidas que podem assegurar mais proteção."

A depender do atual governo e de seu bom relacionamento com o setor agropecuário - e principalmente com seus representantes no Congresso - será difícil aprovar qualquer medida que possa tolher a ocupação de novas terras. 
(Imagens: fotografias de portas na cidade de Iguape, SP de Ricardo E. Rose)  

Chamfort

sábado, 19 de agosto de 2017
"Diógenes (Diógenes de Sinope, filósofo grego) simboliza a existência na contracorrente, tanto com sua grandeza quanto com seus limites. Seu desprezo pelo rebanho e sua exigência de coerência podem suscitar admiração. Desse modo, pode-se pensar que tanta ostentação na simplicidade indica imenso orgulho."  -  Roger-Pol Droit  -  Um passeio pela Antiguidade

(publicado originalmente na página da Academia Peruibense de Letras no Facebook)

Sébastien-Roch Nicolas tomou posteriormente o nome de Nicolas de Chamfort (1740-1794); foi poeta, jornalista, humorista e moralista francês. Aluno brilhante na escola e na universidade, logo tornou-se poeta premiado pela Academia e escreveu algumas comédias encenadas pelo Théâtre Français. A fama o torna secretário do gabinete de Madame Elisabeth, irmã do rei Luis XVI.

Em 1781 Chamfort foi aceito como membro da Academia Francesa de Letras. Tendo aderido à Revolução Francesa, tornou-se autor de diversos artigos publicamente atribuídos a outros personagens famosos da Revolução. Ocupou o cargo de bibliotecário da Biblioteca Nacional, mas acaba preso por ter se alegrado com a morte de Marat (líder revolucionário). 

Alguns dias depois é libertado da prisão mas permanece sob vigilância, pedindo demissão do cargo de bibliotecário. Ameaçado novamente com a prisão, Chamfort tenta o suicídio, sem no entanto vir a falecer. Logo após o ocorrido, falando a amigos, ironiza a incompetência com que havia tentado se matar: "O que vocês queriam? É o que dá ser desajeitado; não se consegue fazer nada, nem mesmo se matar." Porém, não consegue se recuperar do ferimento no rosto e no maxilar e morre alguns meses depois.

Se dependesse apenas das suas comédias e dos poemas que escreveu para sua amada, Chamfort seria apenas uma pequena referência de rodapé na história da literatura francesa. O que o imortalizou foram as notas escritas em cartões, que guardou em seus aposentos e nos quais registrou nos últimos anos da vida suas opiniões, reflexões, observações e casos sobre personagens com os quais convivia. 

Estas notas foram publicadas postumamente em 1803 sob título de "Máximas e pensamentos, personagens e casos". Suas máximas são amargas e céticas, mostrando a maneira crítica com a qual via a sociedade aristocrática, a monarquia e suas instituições, a Igreja e a alta sociedade de seu tempo. Chamfort coloca-se na mesma linha dos moralistas franceses como La Rochefoucauld, La Bruyère e autores como Rivarol e Vaunenagres, tendo sido lido e admirado por filósofos como Schopenhauer e Nietzsche. 

Abaixo apresentamos algumas citações de suas "Máximas e Pensamentos" (Editora José Olympio, 2007):

"Nas coisas grandes, os homens se mostram da maneira que lhes convêm mostrar-se; nas pequenas, mostram-se como eles são."

"O que é um filósofo? É um homem que opõe a natureza à lei, a razão ao costume, sua consciência à opinião pública e seu julgamento ao erro."

"Quando alguém quer se tornar filósofo, não se deve deixar desanimar com as primeiras descobertas aflitivas a respeito dos homens. Para conhecê-los é preciso vencer o descontentamento que eles causam, da mesma forma que o anatomista triunfa sobre a natureza, sobre os seus órgãos e sobre a própria repugnância para tornar-se habilidoso em sua arte."

"Aprendendo a conhecer os males da natureza, desprezamos a morte; aprendendo a conhecer os da sociedade, desprezamos a vida."

"A sociedade é composta de duas grandes classes: os que têm mais jantares do que apetite, e aqueles que têm mais apetite do que jantares."

"Tudo nos homens é igualmente vão, tanto suas alegrias quanto seus dissabores; mas é melhor que a bolha de sabão seja dourada ou azul, em vez de negra ou cinzenta."

(Imagens: pinturas de Edward Burne-Jones)

Saneamento básico e modernidade

sábado, 12 de agosto de 2017
"Muito melhor contentar-se com a realidade; se ela não é brilhante como os sonhos, tem pelo menos a vantagem de existir."   -   Machado de Assis   -   A mão e a luva

Cerca de 4,5 bilhões de pessoas em todo o planeta ainda não têm acesso ao saneamento básico. Os dados fazem parte de um relatório recentemente publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Os números refletem a situação da maior parte dos países pobres e em desenvolvimento, nos quais parte significativa de seus habitantes, que juntos perfazem cerca de 60% da população mundial, ainda não dispõem de acesso regular a tratamento de água e/ou esgoto. Mesmo com relação à água, ainda são 2,1 bilhões de pessoas - 27% dos habitantes do planeta - que não são atendidos por suprimento de água potável. Atualmente, ainda cerca de 600 milhões de pessoas compartilham latrinas com estranhos e quase 900 milhões não dispõem de qualquer tipo de instalação sanitária.

Em setembro de 2000 a Organização das Nações Unidas (ONU) havia oficializado a Declaração dos Objetivos do Milênio, documento assinado à época por 191 países. Concordaram estas nações, incluindo o Brasil, em envidar esforços com o objetivo de melhorar a situação em oito principais áreas, chamados de Objetivos do Milênio (ODM); uma das quais - a sétima - incluindo avanços na situação do saneamento básico. O prazo para o cumprimento das metas foi acordado para o ano de 2015.

Em relatório publicado em 2015, a ONU comunicava que de maneira geral, em quase todos as regiões em desenvolvimento (o relatório não cita países), ocorreram avanços em todas as sete áreas do programa; mais em algumas e menos em outras. Especificamente em relação ao saneamento, houve um avanço na oferta de água potável, que disponível para 76% da população mundial em 1990, chegava a 91% em 2015. Dos 191 países que implantaram o programa, 95 conseguiram atingir metas de melhoria no saneamento básico. No entanto, ainda havia muito por fazer na maior parte das nações. A crise econômica, que afetou a economia mundial a partir de 2008, atingiu especialmente os países pobres, limitando seus recursos disponíveis para investimentos em infraestrutura, especialmente saneamento.

Por isso, ainda em 2015, a ONU lançou um novo programa, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS). Esta nova edição do programa anterior é composto por 17 metas, das quais a sexta tem por objetivo assegurar saneamento básico (água e esgoto) para toda a população mundial, até 2030.

O Brasil é um dos países com o mais baixo nível de saneamento na América Latina. Segundo a ONG brasileira Trata Brasil, o país ainda possui mais de 100 milhões de cidadãos (50,3% da população) sem acesso à coleta de esgotos e somente 42,6% do volume do esgoto coletado é tratado (dados de 2013). No mesmo ano ainda haviam 35 milhões de pessoas sem acesso à água, fornecida por rede de abastecimento. Na média do país, as perdas de água nas tubulações de abastecimento eram de 37%.

É surpreendente que no início do século XXI a maior parte das regiões do planeta, excluindo os países industrializados do hemisfério Norte, ainda apresente níveis de saneamento assim baixo. Já em 2013 a ONU informava que existiam mais pessoas com acesso a telefones celulares, do que a banheiros devidamente assépticos. E pensar que haviam cidades como Mohenjo Daro, estabelecida na região do vale do rio Indo em território do atual Paquistão, que há 4.500 anos atrás já dispunha de sistemas de tubulações, para a coleta dos efluentes da cidade. Comparativamente, a Índia moderna gasta cerca de 50 bilhões de dólares por ano, para tratar de doenças originadas por águas contaminadas por esgotos.

Em todas as principais cidades do mundo organizam-se palestras, seminários e estudos sobre as "smart cities" (cidades inteligentes) e a influência da "internet das coisas" (internet of things - IoT) sobre o futuro planejamento e desenvolvimento urbano. Enquanto isso, ainda existem dezenas (ou centenas) de milhares cidades de diversos tamanhos, que nos países pobres e em desenvolvimento despejam seus esgotos em lagos, rios e nos oceanos, poluindo recursos hídricos essenciais para o equilíbrio ambiental do planeta.

O Brasil é um exemplo típico desta prática, onde o tratamento e a coleta de esgotos não fazem parte da história. Durante o processo de colonização e até o início da industrialização, no final do século XIX, a maior parte das cidades populosas situava-se à beira mar ou rio (Belém, São Luiz, Recife, Salvador, Rio de Janeiro) e os esgotos eram descarregados diretamente nas águas, sem tratamento (o que em parte ainda ocorre atualmente). Foi com a industrialização e a movimentação de grandes contingentes populacionais para os grandes centros urbanos, que surgiu a real necessidade de se implantar sistemas de tratamento de esgoto. As grande obras de saneamento só foram iniciadas durante os anos 1970, quando o governo militar deu início a projetos de infraestrutura de grande porte, como a construção de rodovias, hidrelétricas e estações de tratamento de esgoto. Nas cidades de médio e pequeno porte, a implantação de estações de tratamento de água e esgoto sempre foi dependente de recursos federais ou estaduais, através das companhias estaduais de saneamento.

É pouco provável que diante da situação econômica e política da maior parte dos países pobres e em desenvolvimento, os objetivos da universalização do saneamento sejam alcançados no prazo. A falta de recursos e planejamento, além da questão da corrupção de parte dos governos, são os principais impedimentos para que a maior parte dos países pobres alcance estas metas até 2030. No Brasil, onde já existe um Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) criado em 2007 e em andamento, tudo depende da alocação de recursos e de uma gestão eficiente do programa. Segundo dados do Banco Mundial, publicados na década passada, o país precisaria investir cerca de 25 bilhões de reais ao ano, para atingir a meta de universalização do saneamento até 2030. Mesmo nos melhores anos do governo Lula com o PAC (Plano de Aceleração do Crescimento) I e II, os investimentos não chegaram a estes patamares. Agora, tudo depende da recuperação econômica e da capacidade de gestão de futuros governos.
(Imagens: fotografias de portas da cidade de Iguape, SP por Ricardo E. Rose)

Georg Büchner

sábado, 5 de agosto de 2017

(Publicado originalmente na página da Academia Peruibense de Letras no Facebook)

Georg Büchner (1813-1837), foi escritor, dramaturgo e poeta alemão. Alguns o consideram o "pai do teatro moderno", pelo conteúdo e estilo inovador de suas peças, descrevendo e criticando as condições sociais abjetas em que viviam camponeses e trabalhadores urbanos de sua época. A escolha dos temas sociais fizeram com que Büchner fosse considerado precursor do naturalismo e do expressionismo.

Desde o início da juventude Büchner se envolveu em atividades revolucionárias, fundando o  grupo "Sociedade dos Direitos Humanos". Acusado de ser autor de um panfleto político ilegal, refugiou-se na França e depois na Suíça, onde veio a falecer de tifo com apenas 23 anos. As obras mais conhecidas e significativas do escritor são as tragédias históricas "Woyzeck" e "A morte de Danton".

"A morte de Danton" é provavelmente a melhor obra de Büchner. Trata dos últimos dias de Danton, um dos líderes de Revolução Francesa. Envolvido na atividade revolucionária, Danton se dá conta da falta de sentido da luta na qual estava envolvido. Exatamente o revolucionário que fora um dos idealizadores da revolução, que libertaria os homens, percebe que o movimento e toda a sua violência não fazia mais sentido; não levaria a progresso algum. A peça, apesar de tratar da Revolução Francesa, levanta a discussão sobre o papel do indivíduo na história. Assim o autor faz seu personagem dizer a certa altura da peça: "Somos títeres cujos fios são puxados por poderes desconhecidos; não somos nada, nada nós mesmos."

Uma das discussões que a peça de Büchner levanta é sobre qual seria o papel do indivíduo no processo histórico. Na história somos atores coadjuvantes ou simples figurantes de um imenso teatro, aparentemente sem diretor e enredo?

Um outro tema discutido na peça "A morte de Danton" é a questão do Mal. No terceiro ato da peça, Büchner faz o deputado Payne dizer:

"Pode-se negar o Mal, mas não a dor. Somente a razão pode provar a existência de Deus, o sentimento se rebela contra isso. Lembra-te Anaxágoras: por que eu sofro? Este é o fundamento do ateísmo. A menor contração da dor, que seja somente em um átomo, provoca uma fissura na Criação de cima a baixo."

(Imagem: gravura representando Georg Büchner)