Aristóteles e a Metafísica

sábado, 2 de dezembro de 2017
"Bem, dia marcado, saída ainda no escuro, de madrugada para ganharmos tempo. O galo ainda não havia cantado e as estrelas ainda serviam de bordado de prata para o manto azulado que servia de pala para o Patrão lá de riba."   -   Hugo Bülow   -   Reminiscências gaudérias

Biografia
Aristóteles, o mais famoso discípulo de Platão, nasceu em torno de 385 AEC em Estagira (atual Tessalônica), cidade grega então colônia macedônica, localizada a cerca de 300 km ao norte de Atenas. Aristóteles frequentou a Academia de Platão por cerca de dezenove anos, deixando a escola somente após a morte do mestre. Depois de ser preceptor de Alexandre o Grande, Aristóteles funda sua própria escola de filosofia em Atenas, o Liceu.

Durante doze anos Aristóteles ensina filosofia e mantêm uma escola que contava com outros professores; todos ensinando em três turnos. A escola também dispunha de uma vasta biblioteca, de um jardim botânico e um zoológico. Com a repentina morte de Alexandre, Aristóteles – que por suas ligações com o conquistador macedônio já era considerado espião em Atenas – precisa deixar a cidade às pressas, transferindo-se para a Cálcis, na Eubéia, onde nascera sua mãe. É famosa a frase que Aristóteles teria dito por ocasião de sua fuga de Atenas, dizendo que agia daquela maneira “para evitar que mais um crime fosse perpetrado contra a filosofia”, referindo-se certamente a Sócrates. Logo depois de sua fuga, Aristóteles falece em 322 AEC.

Boa parte da obra de Aristóteles foi perdida, devido à dispersão dos textos entre os discípulos e, principalmente, com o incêndio da biblioteca de Alexandria, em 200 EC. O restante da obra permaneceu espalhado em diversos lugares, tendo sido recuperado a partir de 50 EC, quando o literato Andrônico de Rodes descobriu uma grande quantidade de pergaminhos, contendo textos de Aristóteles escritos pelos discípulos. Andrônico e mais tarde o filósofo Porfírio, no século III, estabeleceram a ordem e a importância nos escritos do filósofo estagirita, formando o que se convencionou chamar de corpus aristotelicum. Esta classificação define – através de várias informações – a época em que cada obra aristotélica que chegou a nós foi escrita. Desta forma, foi identificado o período no qual o filósofo ainda se encontrava sob influência de seu mestre, Platão, mas já contando com um caráter crítico em relação à sua obra, e a fase dos escritos da maturidade, elaborados principalmente na época do Liceu, em Atenas.  

A Metafísica         
O título dado aos escritos reunidos sob o nome de “Metafísica”, surgiu quando da descoberta da obra por Andrônico de Rodes. Encontrados em uma ordem posterior aos livros da Física, Andronico denominou-os simplesmente de ta meta ta physika, os "escritos depois da física". A expressão foi incorporada por todos os filósofos posteriores, tornando-se inclusive uma das áreas de estudo da filosofia. Aristóteles, porém, denominava seus escritos de “filosofia primeira” ou “filosofia teológica”.

A "Metafísica" de Aristóteles engloba catorze livros, que não tratam de somente um tema central. Às vezes, é difícil identificar uma clara sequencia entre um e outro, além do fato de que os assuntos carecem de sequenciamento e continuidade. A obra trata de “uma ciência que investiga o ser como ser e as propriedades que lhe são inerentes devido à sua própria natureza”, como Aristóteles escreve na abertura do Livro IV.

Em nossa análise, limitamo-nos aos quatro primeiros livros da obra. Nestes quatro primeiros tomos, Aristóteles como que prepara o leitor para a apresentação de sua análise do “ser enquanto ser”. Discute o conhecimento e as teorias dos filósofos anteriores a ele (Livro I); estabelece as bases para o conhecimento (Livro II); discute as dificuldades em torno da ciência que quer apresentar (Livro III); e discute aspectos da metafísica e do princípio de não contradição (Livro IV).

Aristóteles inicia o Livro I de sua Metafísica com a frase que ecoa há mais de 2.300 anos na cultura ocidental: “Todos os seres humanos naturalmente desejam conhecimento”. A expressão de certo modo atua como axioma do livro, já que todo o desenvolvimento da obra visa a oferecer este novo conhecimento, elaborado por Aristóteles, a todos os leitores de sua obra, ou seja, simbolicamente a todos os seres humanos.

Em seguida, Aristóteles discute o conhecimento baseado na memória, na prática e nos estudos, apresentando uma graduação do conhecimento, onde deduz que “julga-se o homem da experiência mais sábio do que os meros detentores de qualquer faculdade sensorial, o artista mais do que o homem da experiência, o mestre mais que o artesão; e as ciências especulativas mais ligadas ao saber que as produtivas” (Livro I, Capítulo 1, 30). Aristóteles observa que o conhecimento verdadeiro precisa ter alguma sistemática, quando observa “que a sabedoria é conhecimento de certos princípios” (Livro I, Capítulo 1, 30).

No segundo capítulo do Livro I, Aristóteles ainda discute a sabedoria, firmando que ela pertence a um tipo de conhecimento no grau mais elevado, universal e distante dos sentidos. Avançando em sua argumentação, Aristóteles afirma que o termo que ele está investigando enquadra-se naquele mesmo conhecimento que especula sobre os primeiros princípios e as causas. Ainda no mesmo capítulo o autor utiliza-se de outra ideia, desta vez para explicar o que é a filosofia, mais tarde largamente utilizada: “É por força de seu maravilhamento que os seres humanos começam agora a filosofar e, originalmente começaram a filosofar maravilhando-se primeiramente ante perplexidades óbvias e, em seguida, por um progresso gradual, levantando questões também acerca das grandes matérias, por exemplo, das mutações da lua e do sol, a respeito dos astros, a respeito da origem do universo. Ora aquele que se maravilha e está perplexo sente que é ignorante (de modo que, num certo sentido, o amante dos mitos é um amante da sabedoria, uma vez que os mitos são compostos de maravilhas), portanto se foi para escapar à ignorância que se estudou filosofia, é evidente que se buscou a ciência por amor ao conhecimento, e não visando qualquer utilidade prática” (Livro I, Capítulo 2, 10, 15 e 20).

Aristóteles estabelece que há quatro tipos reconhecidos de causas originais: 1) a substância ou essência de uma coisa – a causa formal; 2) seu substrato material – a causa material; 3) a fonte ou agente através do qual passa a existir – a causa eficiente; e 4) o objetivo ou o fim para o qual algo passa a existir – a causa final.

Definidos estes pontos, Aristóteles passa a discussão das doutrinas dos filósofos que o antecederam. Iniciando o tema, Aristóteles comenta que “A maioria dos primeiros filósofos concebeu apenas princípios materiais para as coisas” (Livro I Capítulo 3,5). Informa que baseado no pressuposto destas teorias, nada era gerado ou destruído, já que esta entidade primária não era destruída. Em seguida, discorre sobre as diversas opiniões e doutrinas de alguns filósofos pré-socráticos. De Tales de Mileto fala que este considerava a água como princípio de tudo. De Anaxímenes de Mileto, comenta que este sustenta que o ar é anterior à água. Hipaso de Metaponto e Heráclito de Éfeso sustentavam que o princípio primordial era o fogo, e assim por diante, passando por Anaxágoras e Empédocles. Ao final da análise destes filósofos, Aristóteles se pergunta “Porque se é realmente verdadeiro que toda geração e destruição procede de um elemento, ou mesmo de mais de um, por que sucede assim e qual é a causa?” (Livro I, Capítulo 3, 20).

Com relação a Leucipo e Demócrito, Aristóteles comenta que estes sustentavam que os elementos são o cheio e o vazio, classificando o primeiro ser e o segundo como não ser. Ainda dando exemplos deste princípio único do universo na acepção das diversas correntes filosóficas, Aristóteles avalia a teoria dos números dos pitagóricos e a teoria da imutabilidade do universo, defendida pelos eleatas. Abordando as diversas teorias sobre o "Ser" dos filósofos que o antecederam, o Estagirita termina sua explanação com a concludente frase: “Isso é tudo, portanto, que pode ser aprendido com os primeiros filósofos e seus sucessores”.

Ainda no mesmo livro, Aristóteles discute a questão das Ideias de Platão, conceito filosófico que de certo modo representa uma ruptura com os filósofos anteriores. Platão, segundo a avaliação de Aristóteles, teve a ideia de que ao "Primeiro Princípio" não correspondia nada sensível, como colocado por todos os filósofos pré-socráticos (discutidos anteriormente por Aristóteles), mas a “entidades de outro tipo, isto porque é impossível haver definição geral de coisas sensíveis que estão em constante mutação” (Livro I, Capítulo 6, 5). Platão empregava, segundo Aristóteles, somente duas causas (diferentemente dele que empregava quatro), ou seja, a essência e a causa material. As Ideias (Aristóteles utiliza a expressão "Formas") são causa da essência em todo o universo e o "Uno" é a causa da essência nas Ideias.

Aristóteles, porém, também critica a posição de seu mestre, Platão, já que “ao tratar o Uno como substância, e não como predicado de alguma outra realidade, seu ensinamento assemelha-se ao dos pitagóricos, e inclusive é concordante com estes, ao enunciar que os números são as causas do ser em tudo o mais” (Livro I, Capítulo 6, 20).

Novamente, Aristóteles firma que os filósofos anteriores tentaram explicar o primeiro princípio, sem chegar a uma explicação aceitável: “quanto à essência ou substâncias das coisas, ninguém a enuncia explicitamente” (Livro I, Capítulo 7, 30). Em seguida comenta que vai examinar as posições dos pensadores das gerações passadas e apontar os seus erros, já que todos aqueles que consideram somente a matéria corpórea estão incorrendo em erro. Depois de novamente comentar aspectos das doutrinas de Empédocles, Anaxágoras, dos pitagóricos e de se voltar também à teoria das Formas (Ideias) de Platão, Aristóteles aponta a dificuldade de se explicar o "Ser" a partir de tais teorias, dada a variedade de elementos e a dificuldade da percepção.

Debatendo e criticando sistematicamente os conceitos dos sues antecessores, Aristóteles acaba chegando, mais uma vez, ao pensamento de seu mestre, de cuja teoria das Ideias afirma: “Dizer que as Formas (Ideias) são modelos e que outras coisas delas participam é empregar frases ocas e metáforas poéticas, pois o que é que confecciona coisas no molde das Ideias?” (Livro I, Capítulo 9, 20).

O Livro II inicia com a afirmação de que “a investigação da verdade é difícil para uma única pessoa, mas a contribuição de cada investigação traz um resultado considerável.” Trata-se também de uma bela definição do desenvolvimento do processo da investigação científica. Como afirmou Isaac Newton, em relação aos seus descobrimentos científicos, dizendo que era um anão que enxergava longe porque estava em pé, nas costas de gigantes. Com isso, a exemplo de Aristóteles, Newton se referia à contribuição que cada antecessor seu fez para a investigação da verdade (científica).

Aristóteles afirma que deve haver algum primeiro princípio, já que não é possível que as causas se estendam por uma sequência infinita: "Ademais", se o número dos tipos de causas fosse infinito, continuaria sendo impossível obter conhecimentos, uma vez que é somente quando ficamos familiarizados com as causas, que supomos conhecer uma coisa, e não é possível, num tempo finito, examinar o que é infinito por adição (Livro II, Capítulo 2, 30).

No início do Livro III Aristóteles afirma que é necessário, na ótica da ciência que está sendo investigada, descrever as questões que devem ser primeiramente discutidas. Depois de colocar várias questões quanto à substância, Aristóteles afirma que é preciso examinar a que domínio pertence o estudo destas questões. Acima de tudo, afirma, está “a mais desnorteante de todas as questões: se a unidade e o ser não são distintos, mas a substância das coisas, mas se assim não é, e se o substrato é algo diferente e se os primeiros princípios são universais ou semelhantes a coisas individuais; e se existem em potência ou ato; e se sua potencialidade ou atualidade depende de alguma coisa além do movimento” (Livro III, Capítulo 1, 5,10).
     
Em seguida Aristóteles discute qual ciência teria como objeto de estudo as substâncias e pergunta se só existem substâncias sensíveis ou se também existiriam outras. Volta a criticas Platão indiretamente, novamente fazendo referência a teoria das Ideias ao afirmar que “o mais despropositado é a doutrina segundo a qual há certas coisas independentemente daquelas do universo sensível, e que essas coisas são idênticas às coisas sensíveis, salvo pelo fato de serem eternas, enquanto as coisas sensíveis são perecíveis” (Livro III, Capítulo 2, 5).

Inicia-se uma discussão sobre qual ciência deve ser aquela a falar do “ser enquanto ser” e qual seria seu objeto de estudo. Afirma depois que “a questão mais árdua de todas a ser investigada, e ao mesmo tempo a mais importante do prisma da descoberta da verdade, é se, afinal, o ser e a unidade são substâncias das coisas existentes, não sendo cada um deles nada mais do que ser e unidade respectivamente, ou se devemos inquirir o que são exatamente ser e unidade, havendo alguma outra natureza a eles subjacente.” (Livro III, Capítulo 4, 5). Durante todo o Livro III Aristóteles ainda discute outros aspectos de sua investigação, como a impossibilidade da multiplicidade de seres, caso haja ser absoluto e unidade absoluta, e a possibilidade da existência do nada, caso os elementos existam potencialmente.

O Livro IV abre com a famosa definição da Metafísica: “Há uma ciência que investiga o ser como ser e as propriedades que lhe são inerentes devido a sua própria natureza”. E ainda completa que “E do ser como ser que nós também temos que aprender as primeiras causas” (Livro IV, Capítulo 1, 30). Mais à frente, Aristóteles deduz que a causa primária é a substância e nesse caso “é da própria substância que o filósofo deve aprender os primeiros princípios e causas” (Capítulo 2, 15). Aristóteles comenta que a função de todo filósofo é também investigar os princípios do raciocínio silogístico, já que é impossível que uma coisa seja e não seja.
Mais à frente, critica a teoria de Protágoras (filósofo sofista contemporâneo de Platão), que, se levada às suas últimas consequências, afirma que tudo é ao mesmo tempo verdadeiro e ao mesmo tempo falso (o raciocínio dos sofistas). Em seguida, aponta o fato de que as percepções podem enganar as pessoas, o que pode nos levar ao raciocínio de que não existem certezas. Outro grupo importante de pensadores, os eleatas, defendia que o universo era constituído de uma única e imutável substância. Negando a realidade da mudança, observa Aristóteles, os eleatas evitaram a necessidade de examinar a questão da causa eficiente das coisas (o princípio do movimento e repouso dos seres).

Através de outros exemplos, como Epicuro e Crátilo, Aristóteles aborda a questão do movimento, de sua possibilidade ou impossibilidade, e a facilidade com que nossas impressões nos enganam. Neste caso, Aristóteles usa como exemplo as percepções de uma pessoa saudável, para quem o doce tem gosto de doce, e o enfermo, para quem o doce pode ter gosto amargo (comparação famosa na Antiguidade, utilizada pelo filósofo Demócrito e por várias escolas de pensamento). Por fim, ainda, Aristóteles critica aqueles que negam uma realidade do fenômeno em si, dizendo que tudo está atrelado à opinião das pessoas, mas que não pode haver opiniões contrárias ao mesmo tempo: “Dizer que o que é não é, ou que não é, é falso, mas que o que é, e que o que não é não é, é verdadeiro” (Livro IV, Capítulo 7, 25). Com isto Aristóteles estabelece as bases do princípio da não contradição.

Ao final do IV livro, Aristóteles estabelece que todas as coisas são movidas por outras, que todas as coisas estão por vezes em movimento ou em repouso. Todavia, há algo que não é movido e que é a causa de todo o movimento; o Primeiro Motor (neste caso, Aristóteles refere-se ao movimento das esferas dos astros).


Bibliografia
ARISTÓTELES, Metafísica (tradução, notas e textos adicionais de Edson Bini), São Paulo: Edipro, 2006
REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario, História da Filosofia Vol. I, São Paulo: Paulus, 1990
ADLER, Mortimer, CAIN, Seymour, Philosophy – The Great Ideas Plan, Chicago: Encyclopaedia Britannica, Inc., 1963
(Imagens: pinturas de Jacob Lawrence)

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