Protestantismo e capitalismo

sábado, 27 de janeiro de 2018
"Há homens que, se pudessem conhecer seus subalternos e conhecer-se a si próprios, teriam vergonha de estar em evidência."   -    La Bruyère   -   Caracteres

O livro de Weber “A ética protestante e o espírito do capitalismo” foi eleito em 1999, em uma pesquisa organizada entre intelectuais brasileiros pela Folha de São Paulo, como o melhor livro de não-ficção do século. Tal a importância e perenidade da obra escrita no início do século XX. Durante os anos 1960, 1970 e 1980, quando o pensamento de esquerda tinha forte influência nos estudos sociológicos no Brasil, a obra de Weber foi relegada a um segundo plano.

Em sua obra Weber analisa características das várias correntes protestantes – luteranos, calvinistas, menonitas, batistas, puritanos, quackers e vários outros – traçando em linhas gerais seu posicionamento em relação às praticas capitalistas de seu tempo. Inicialmente o autor define bem o objeto de seu estudo, estabelecendo o que entende por capitalismo. Escreve Weber:   

“E o mesmo é verdade também para a mais decisiva força da nossa vida moderna: o capitalismo. O impulso para ganho, a persecução do lucro, do dinheiro, da maior quantidade possível de dinheiro, não tem em si mesma, nada que ver com o capitalismo. Tal impulso existe e sempre existiu entre garçons, médicos, cocheiros, artistas, prostitutas, funcionários desonestos, soldados, nobres, cruzados, apostadores, mendigos, etc. Pode-se dizer que tem sido comum a toda sorte e condição humana em todos os tempos e em todos os países da Terra, sempre que se tenha apresentado a possibilidade objetiva para tanto. É coisa do jardim de infância da história cultural a noção de essa idéia ingênua de capitalismo deva ser eliminada definitivamente. A ganância ilimitada de ganho não se identifica, nem de longe, com o capitalismo, e menos ainda com seu 'espírito'." (Weber 2002, p. 24)


Acaba assim o autor com uma série de visões distorcidas, definindo o que considera capitalismo, dirimindo mal-entendidos que até hoje ainda se encontram em obras de especialistas e que acabam sendo popularizados pela comunicação de massa. 

O ponto fulcral da argumentação weberiana – fundamentada por grande número de exemplos tirados da história (o livro de Weber tem mais de 90 páginas de “notas do autor”) –, é de que o protestantismo, especificamente o calvinismo, deu origem a novas formas de pensamento, através das quais grupos sociais passaram a se posicionar no mundo através do trabalho. Trata-se de uma postura fundamentada na crença religiosa, que através da ética se exterioriza principalmente no trabalho e na maneira como são usados os seus frutos. Segundo Weber, o calvinismo, dadas certas características de sua doutrina, estabelece que o cristão pratique sua ascese principalmente através do trabalho. O calvinismo eliminara os ritos e sacramentos, através dos quais o católico podia expiar suas culpas e retomar sua ligação com Deus. Sendo assim, o calvinista mostrava seu relacionamento com Deus – confirmando o fato de estar entre os eleitos destinados ao Paraíso – através de uma racionalidade do trabalho e da boa aplicação de seus frutos: economia e novo investimento do lucro, aversão ao luxo e ostentação. Escreve Weber: “Assim, a riqueza seria eticamente má apenas na medida em que venha a ser uma tentação para um gozo da vida no ócio e no pecado, e sua aquisição seria ruim só quando obtida com o propósito posterior de uma vida folgada e despreocupada” (Weber 2002, p. 118).

A ética do trabalho foi o ponto principal através da qual o calvinismo (huguenotes na França, puritanos na Inglaterra, protestantes nos Países Baixos) e outras seitas reformistas (pietistas na Alemanha, quackers e metodistas na Inglaterra) influenciaram decididamente o desenvolvimento do capitalismo, segundo Max Weber.
Há que se notar que todos os países que entre o século XVI e XVIII desenvolveram seu sistema financeiro, comercial, de manufatura, sua marinha e suas comunicações, eram calvinistas, protestantes ou tinham forte influência destas correntes religiosas – como a Inglaterra, a França, os Países Baixos, certas regiões da Alemanha e Suíça. Comparativamente, os países essencialmente católicos, como Portugal, Espanha e Itália, desenvolveram-se entre o final do século XV e XVI, para depois gradualmente caírem em uma decadência econômica e social, da qual só sairiam 450 anos depois.   

A mentalidade calvinista, com a valorização do trabalho e o reinvestimento dos lucros, desenvolveu extremamente o comércio entre os séculos XVI e XVIII, criando as bases para a industrialização, iniciada no final do século XVIII, na Inglaterra. É evidente que este desenvolvimento não foi provocado somente pelo calvinismo e pela mentalidade burguesa mercantilista. Outros fatores, como o liberalismo político de John Locke, a ciência de Newton e o modelo do sistema parlamentar inglês, baseado nos três poderes, também contribuíram para a formação da mentalidade capitalista. 

A hipótese histórica e social de Max Weber, tentando explicar os fatores culturais que condicionaram o desenvolvimento do capitalismo sempre encontrou muitos críticos, principalmente entre os pensadores marxistas. Segundo estes, Weber estaria cometendo o erro de explicar a infraestrutura (o desenvolvimento do sistema capitalista) pela superestrutura (o cristianismo em sua versão calvinista). Atualmente, é cada vez mais consenso de que a explicação histórica e sociológica tem várias vertentes e que não existe uma explicação única, dada a complexidade do assunto.
(Imagens: pinturas de Rodolfo Amoedo)

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 20 de janeiro de 2018

(publicado originalmente na página da Academia Peruibense de Letras no Facebook)

Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) foi um dos maiores poetas brasileiros, além de contista e cronista. Descendia de uma família de produtores rurais, estabelecida em Minas Gerais há gerações. Drummond estudou em Belo Horizonte e em Nova Friburgo, no Colégio Anchieta, de jesuítas. Nesta instituição, o que mais fascinava o rapaz era a aura de intelectualidade e a constante busca de conhecimentos dos professores. Por um desentendimento com um professor, o futuro poeta foi expulso do colégio. O fato o marcou bastante, a ponto de fazê-lo declarar: "Perdi a fé. Perdi tempo. Sobretudo, perdi a confiança na justiça dos que me julgavam." De volta a Belo Horizonte, Drummond ingressa na Universidade Federal de Minas Gerais, onde conclui o curso de Farmácia. Casa-se com Dolores Dutra de Morais, com quem teve dois filhos, um dos quais falece logo após o parto.

Drummond começa a escrever em 1921, quando publica artigos no jornal "Diário de Minas Gerais". No ano seguinte é premiado em um concurso literário com seu conto "Joaquim no Telhado". Em 1928, publica seu poema "No Meio do Caminho" na Revista de Antropofagia, editada em São Paulo por integrantes do movimento modernista. O poema provocou escândalo, por sua constante repetição de certas expressões e pelo uso de "tinha uma pedra" ao invés de "havia uma pedra". Ainda em 1928 Drummond entra para o serviço público, no qual atuaria durante toda a sua vida profissional. Em 1934 muda-se de Minas Gerais para a cidade de Rio de Janeiro, onde trabalha como chefe de gabinete do então ministro da Educação Gustavo Capanema, antigo colega do poeta no grupo "Os intelectuais da rua Bahia".

Nos anos seguintes, Drummond publica obras poéticas, estreia como ficcionista e traduz autores como Balzac, Frederico Garcia Lorca e Molière. Durante os anos 1960 e 1970 o poeta também escreve uma série de crônicas para jornais do Rio de Janeiro. Drummond morreu em 17 de agosto de 1987, doze dias após o falecimento de sua filha, cuja morte muito o abalou. As principais obras poéticas do autor são: "Alguma Poesia" (1930); "Brejo das Almas" (1934); "Sentimento do Mundo" (1940); "José" (1942); "A Rosa do Povo" (1945); "Lição de Coisas" (1962); "Boitempo" (1968); "Amar Se Aprende Amando" (1985), entre outras. Drummond também escreveu antologias (entre elas "Antologia Poética", 1962), vasta obra em prosa, além de livros infantis.

Poeta da segunda geração do Modernismo - iniciado pelos paulistas Mario e Oswald de Andrade, entre outros -, Drummond, a exemplo destes, também escreve em verso livre. Segundo o crítico literário Alfredo Bosi, a poesia de Drummond alcança um grau de sofisticação e universalidade, que o coloca além das referências literárias comuns e acima de todas as marcas ideológicas. De sua obra selecionamos os poemas abaixo, que constam da obra "Carlos Drummond de Andrade - Antologia Poética" (Companhia das Letras, 2013):


Cidadezinha qualquer

Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.

Eta vida besta, meu Deus.

(Antologia Poética, 1962)



Cerâmica

Os cacos da vida, colados, formam uma estranha xícara.

Sem uso,
ela nos espia do aparador.

(Lição das Coisas, 1962)



Tristeza no céu

No céu também há uma hora melancólica.
Hora difícil, em que a dúvida penetra nas almas.
Por que fiz o mundo? Deus se pergunta
e se responde: Não sei.

Os anjos olham-no com reprovação.
e plumas caem.

Todas as hipóteses: a graça, a eternidade, o amor
caem, são plumas.

Outra pluma, o céu se desfaz.
Tão manso, nenhum fragor denuncia
o momento entre tudo e nada,
ou seja, a tristeza de Deus.

(José, 1942)

(Imagem: fotografia de Carlos Drummond de Andrade)

Píndaro

sábado, 13 de janeiro de 2018

(publicado originalmente na página da Academia Peruibense de Letras no Facebook)


O poeta Píndaro, também conhecido como Píndaro de Cinoscefale ou Píndaro de Beozias, nasceu na cidade de Cinocéfalas em 518 a.C. e morreu em 438 a.C. Pertencia à aristocracia local, pois sua família era de origem dórica, do clã dos Égidas. Jovem mudou-se para Atenas, onde estudou com poetas e filósofos e aprendeu música como os então famosos músicos Agatides e Apolodoro. Aos 20 anos escreveu seu primeiro poema, iniciando uma carreira que o tornaria um dos maiores poetas na história.

Píndaro escreveu hinos, lamentos, elogios e outros gêneros, organizados em 17 livros. No entanto, o que restou de sua obra foram 45 epinícios ou odes; uma forma de poesia lírica que celebrava a vitória dos vencedores dos jogos pan-helênicos (dos quais faziam parte os jogos Olímpicos, os jogos Pítios, os Nemeus e os Ístmicos).

A maior parte das odes de Píndaro eram compostas por encomenda. Através delas o poeta louvava homens ilustres ou os ganhadores dos torneios esportivos. Escrito, o poema era entregue ao destinatário ou ao mestre de coro, que organizava a recitação da ode. A cópia do homenageado, feita em papiro melhor acabado, muitas vezes era depositada em algum templo.

Trechos das obras de Píndaro são citados por diversos autores gregos; como o historiador Heródoto, o comediógrafo Aristófanes, o filósofo Platão, entre outros. As odes do poeta continuaram a ser estudadas e reunidas em volumes durante a Antiguidade, por eruditos gregos e romanos. Durante a Alta Idade Média (século V ao XI) os poemas de Píndaro passaram por certo esquecimento, e sua leitura limitou-se praticamente à área de influência cultural do império bizantino. Com o florescimento dos estudos clássicos a partir do século XIII na Europa, a obra de Píndaro volta a ser lida e divulgada.

Nos séculos XIX e XX diversos estudiosos da Alemanha, Inglaterra e França passaram a dedicar-se ao estudo das odes do poeta, pesquisando sua gramática, aspectos religiosos e míticos, históricos, sociais e políticos de sua obra. Em Píndaro espelha-se o ambiente da Atenas do século V a.C., às vésperas de a cidade se tornar o centro cultural, econômico e político da Grécia antiga.

As odes que nos chegaram do poeta foram divididas em quatro livros, cada um correspondendo ao jogo que celebrava: as "Odes píticas", as "Odes olímpicas", as "Odes nemeias" e as "Odes ístmicas". Da obra do poeta, selecionamos os seguintes trechos:


Do livro "Odes Olímpicas" (Editora Abysmo, 2017), apresentando as odes do autor em linguagem atual (disponível no site http://deusmelivro.com/mil-folhas/odes-olimpicas-pindaro-26-9-2017/):


“Se a morte é inevitável, porque havíamos de acalentar, em vão,

Uma velhice inominável, sentados nessa escuridão pesada

Que é não tomar parte de nada do que é belo?”


“Dizer coisas belas sobre as divindades

É o que convém a um homem,

Pois pesará menos a sua responsabilidade.”


“O Além é inacessível,

Tanto para quem tem perícia quanto para quem a não tem.

Não o perseguirei. Não faria qualquer sentido.“



Trecho de "Neméia XI" (do trabalho "Contingência em Píndaro: Olímpica 12, Píticas 8 e 10, Nemeias 6 e 11" de Gustavo H. M. Frade, disponível em http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP-8STND8/conting_ncia_em_p_ndaro__ol_mpica_12__p_ticas_8_e_10__nemeias_6_e_11.pdf?sequence=1):


"Eu louvo o homem como bem-aventurado, pelo pai Arcesilas,

e também pelo admirável aspecto e pela firmeza congênita.

Mas, se alguém, tendo prosperidade, supera os outros na forma

e, sendo o melhor nas competições, demonstra sua força,

que se lembre que veste membros mortais

e será vestido de terra, o fim de todos."


(Imagem: foto de escultura do busto de Píndaro)

Consequências da crise econômica: quem vai registrá-las?

sábado, 6 de janeiro de 2018

"Deixo cada um viver segundo sua compleição, e aceito que os que assim o queiram morram pelo que acreditam ser seu bem, contanto que me seja permitido, a mim, viver pela verdade."   -  Baruch Espinosa   -   Carta XXX a Oldenburg


"Somos felizes ou infelizes por uma profusão de coisas que não aparecem, que não se dizem e que não se podem dizer."  (Nicolas Chamfort, Pensamentos, máximas e anedotas)


Talvez, um dia, os historiadores do futuro escrevam sobre os efeitos da crise econômica que está afetando o país desde 2013. Não seria um relato de seus efeitos nefastos sobre a macro e a microeconomia, análises que já vêm sendo feitas por especialistas e instituições de pesquisa, porém, principalmente, sobre a vida diária das milhões de famílias e indivíduos do país.

Nos estudos técnicos quantitativos dos economistas e outros analistas, a crise representa principalmente escassez de recursos; menos investimentos, menos produção, queda do número de empregos, redução do consumo, aumento dos juros, aumento da dívida pública... O impacto de uma crise econômica destas proporções é comparável à de uma revolução ou de uma guerra; um abalo que faz com que tudo fique fora do prumo. Se a sociedade brasileira já vinha sofrendo uma desestruturação, um esgarçamento do tecido social, a crise econômica, com todas as suas consequências, contribuiu fortemente para ampliar e aprofundar este processo destrutivo.

Terão os futuros historiadores suficientes dados, informações e depoimentos, para relatar alguns dos milhões de dramas das pessoas comuns? Escreverão sobre o indivíduo que não consta dos relatos da história; as pessoas desconhecidas do registro da mídia, os que não ocuparam cargos públicos importantes, que esperaram horas e dias nas longas filas de atendimento, que em todo lugar foram apenas um número, aqueles que nada fizeram de excepcional e cuja memória persistirá, se muito, nas lembranças de filhos e netos que eventualmente tiveram - para depois desaparecerem nesse mar de biografias esquecidas que é a história da humanidade?

Que lembrança ou relato restará de tantos planos de vida postergados para um futuro indefinido, dos projetos abandonados, dos sonhos desfeitos, das esperanças abandonadas? Mudanças de cidade para encontrar trabalho, relacionamentos desfeitos, carreiras interrompidas, estudos abandonados. Falta de recursos para continuar tratando uma doença, às vezes até falta dinheiro para comprar comida ou tratar dos velhos. Quem dará voz a estes milhões de indivíduos - gente de carne e osso (como escreveu o filósofo Miguel de Unamuno), com sentimentos e aspirações, como você e eu - que perderam o rumo, tomaram uma rasteira da vida e sofreram uma ruptura em suas existências e em seus sonhos?



Em países como Estados Unidos, que também foram afetados pela crise econômica, institutos médicos de pesquisa constataram que parte da população também foi afetada psicologicamente pelas consequências da recessão. A perda do emprego, de bens ou às vezes até da própria casa, aumentou os casos de depressão, síndromes diversas e, consequentemente, o consumo de álcool e drogas. Uma geração de americanos, em sua maioria membros das classes assalariadas mais baixas, está morrendo mais cedo por doenças relacionadas diretamente ao estresse profundo: doenças do coração, diabetes, acidente vascular cerebral, câncer e consumo de drogas.

Quem poderá avaliar quais serão as consequências da crise econômica aqui no Brasil, na vida dos indivíduos, das famílias e dos grupos sociais? E o mais importante: quem fará o relato destas desgraças, das tragédias vividas pelos Joãos e Marias, pelos Antonios e pelas Anas? O mais provável é que, também desta vez, estas vidas e suas histórias sejam ignoradas e esquecidas, submergindo no infinito mar da história, onde a maioria de nós desaparecerá anonimamente.  
(Imagens: pinturas de Luke Fildes)