"Deixo cada um viver segundo sua compleição, e aceito que os que assim o queiram morram pelo que acreditam ser seu bem, contanto que me seja permitido, a mim, viver pela verdade." - Baruch Espinosa - Carta XXX a Oldenburg
"Somos
felizes ou infelizes por uma profusão de coisas que não aparecem, que não se
dizem e que não se podem dizer." (Nicolas
Chamfort, Pensamentos, máximas e anedotas)
Talvez, um dia, os
historiadores do futuro escrevam sobre os efeitos da crise econômica que está afetando
o país desde 2013. Não seria um relato de seus efeitos nefastos sobre a macro e
a microeconomia, análises que já vêm sendo feitas por especialistas e
instituições de pesquisa, porém, principalmente, sobre a vida diária das
milhões de famílias e indivíduos do país.
Nos estudos técnicos
quantitativos dos economistas e outros analistas, a crise representa
principalmente escassez de recursos; menos investimentos, menos produção, queda
do número de empregos, redução do consumo, aumento dos juros, aumento da dívida
pública... O impacto de uma crise econômica destas proporções é comparável à de
uma revolução ou de uma guerra; um abalo que faz com que tudo fique fora do
prumo. Se a sociedade brasileira já vinha sofrendo uma desestruturação, um esgarçamento do tecido social, a crise econômica, com todas
as suas consequências, contribuiu fortemente para ampliar e aprofundar este
processo destrutivo.
Terão os futuros
historiadores suficientes dados, informações e depoimentos, para relatar alguns
dos milhões de dramas das pessoas comuns? Escreverão sobre o indivíduo que não consta
dos relatos da história; as pessoas desconhecidas do registro da mídia, os que
não ocuparam cargos públicos importantes, que esperaram horas e dias nas longas
filas de atendimento, que em todo lugar foram apenas um número, aqueles que
nada fizeram de excepcional e cuja memória persistirá, se muito, nas lembranças
de filhos e netos que eventualmente tiveram - para depois desaparecerem nesse
mar de biografias esquecidas que é a história da humanidade?
Que lembrança ou relato restará
de tantos planos de vida postergados para um futuro indefinido, dos projetos
abandonados, dos sonhos desfeitos, das esperanças abandonadas? Mudanças de
cidade para encontrar trabalho, relacionamentos desfeitos, carreiras
interrompidas, estudos abandonados. Falta de recursos para continuar tratando uma
doença, às vezes até falta dinheiro para comprar comida ou tratar dos velhos. Quem
dará voz a estes milhões de indivíduos - gente de carne e osso (como escreveu o
filósofo Miguel de Unamuno), com sentimentos e aspirações, como você e eu - que
perderam o rumo, tomaram uma rasteira da vida e sofreram uma ruptura em suas existências
e em seus sonhos?
Em países como Estados
Unidos, que também foram afetados pela crise econômica, institutos médicos de
pesquisa constataram que parte da população também foi afetada psicologicamente
pelas consequências da recessão. A perda do emprego, de bens ou às vezes até da
própria casa, aumentou os casos de depressão, síndromes diversas e, consequentemente,
o consumo de álcool e drogas. Uma geração de americanos, em sua maioria membros
das classes assalariadas mais baixas, está morrendo mais cedo por doenças
relacionadas diretamente ao estresse profundo: doenças do coração, diabetes,
acidente vascular cerebral, câncer e consumo de drogas.
Quem poderá avaliar quais
serão as consequências da crise econômica aqui no Brasil, na vida dos
indivíduos, das famílias e dos grupos sociais? E o mais importante: quem fará o
relato destas desgraças, das tragédias vividas pelos Joãos e Marias, pelos
Antonios e pelas Anas? O mais provável é que, também desta vez, estas vidas e
suas histórias sejam ignoradas e esquecidas, submergindo no infinito mar da
história, onde a maioria de nós desaparecerá anonimamente.
(Imagens: pinturas de Luke Fildes)
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